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sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Travessia na Baia de Guanabara...





A Barca Rio-Niterói.
                                                                                                             Fernanda Figueiredo. 1985.

O ano era 1981. Ufa! Estudarei na UFF, viajarei de barcas, que aventura, que maravilha! Todos os dias olharei o mar azul, as gaivotas. Sentir-me-ei realizada.

Que ironia... Ao longo destes anos de vida estudantil fiz a travessia da Baia de Guanabara enfrentando dura realidade. Esperar todos os dias por 20 minutos, correr ou viajar em pé, descer, pular a até se necessário, nadar.

Viajei de barcas, às vezes, quatro vezes por dia, ao longo da semana, durante vários anos. Juro que até Araribóia já chorou de pena. Penso que os estudantes da UFF são heróis anônimos desta árdua batalha.

Felizmente nunca aconteceu nenhum naufrágio nos anos de faculdade, cansei de ver guarda-vidas empoeirados. Também pudera o tempo de tragédias já passou. Em 1983 a barca submergiu em razão de um tiro na Revolta armada. Uma outra pegou fogo. Hoje, ela só pega fogo, quando estudantes da UFF vêm em peso para manifestações políticas na Cinelândia ou como naquele saudoso comício da Candelária.

A barca representa o espelho da nossa sociedade. Pode-se obter uma visão sociológica bem mais ampla e profunda, do que se aprende na Universidade. “A barca cheira a povão”, já dizia um pequeno burguês/Por lá toda gente do agreste e do sudeste/. “Abrem-se a porteira e mais parece uma boiada”.

Houve a fase dos camelôs, alguns até bem pitorescos, vendia-se de tudo: balas, biscoitos, tesouras, revista pornô, mapa e, tudo mais que se tinha direito. E ao som estridente dos camelôs, a viagem prosseguia... Mais vinte minutos de emoção e barulho. Teve uma época que havia mais camelô do que estudante.

Possivelmente, haveria algum estudante de história dando uma de camelô para superar a crise. Marx explica.
Mas aí, camelô jaz! Em contrapartida, surgiram uns guardinhas cheios de moral. Agora, reina a paz e os bons costumes, só alterados, por volta, das 22 horas quando se reúnem estudantes da UFF de volta pra casa... Mais parece um mercado de venda de peixe, falava uma senhora inconformada.

Afinal, quem tem medo de viajar de barcas? Às vezes, confesso que sentia algum receio com o balanço mais prolongado ou quando imensos cargueiros nos ameaçavam. Pensando bem, o perigo sempre rondou nossas cabeças, quando aviões da ponte aérea nos sobrevoavam. 

Não há castigo maior que viajar de barca nos dias frios de muita neblina, pior ainda, viajar com fome. Aí, sim, pintava a saudade do camelô. 

No fundo, ninguém gosta de viajar sozinho nas Cantareiras, nome antigo das barcas, hoje, um tanto esquecido. Melhor comprar um jornal cujo inconveniente é o preço. A barca mais parece uma biblioteca fluvial. Há uma grande variedade de leitura: o “Jornal dos Sports” e o “Dia” são os preferidos. Os estudantes preferem a ‘“A Folha de São Paulo”, enquanto intelectuais leem “O nome da Rosa”. É a biblioteca mais democrática do País. A barca, talvez, seja o transporte mais politizado que existe. Fala-se de tudo e de todos.

Os estudantes da UFF sempre tiveram cautela com os comentários na barca. Falar de professor dá “bode”. Tem sempre algum na escuta é só olhar para trás... Hã? Já vi...!

Quantos flertes começados numa barca cheia das 18 horas, em meio a um papo corrido, sobre inflação, política, ideologias, angústias, encontros marcados, etc. E no meio desse contexto, verifico a eterna discussão de fumantes e não fumantes.

Mas, a barca tem sua sessão de humor. Quem não se lembra daquela senhora que levanta e malha o governo, Pelé e Roberto Carlos? Na barca inteira ouve-se um estrondo de gargalhadas de fazer inveja a Jô Soares. Além, desta grande figura, tem um senhor que prega o Evangelho. Certo dia, um punk doidão mandou essa: “Deus é o mais punk que pintou nas paradas, falou?”

Barca também é sinônimo de greve. E durante um período esta fez falta, quem diria...

E o mar, quanta poluição, hein? Um passageiro comentava que tempos atrás viam-se peixinhos dourados na Baia de Guanabara. O subdesenvolvimento do povo é tão grande que se permite jogar qualquer detrito ao mar sem a menor consciência ecológica. A Conerj poderia desenvolver uma campanha nesse sentido. É uma questão que deveria bater forte.

E por falar em jogar-se ao mar, quantos suicídios, pessoas que se lançam ao mar, algumas resgatadas, outras nem percebidas foram.
Enfim...
Meu único desejo era viajar na frente da embarcação, na proa, para marinheiro nenhum botar defeito.
E se o mar não fosse tão fétido eu viria a nado, com o diploma na mão... Adeus, cidade sorriso!
Maio de 1985.

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