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sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Como era doce o meu rio...



DOCE, UM RIO QUE PEDE PELA VIDA.

Em dezembro de 1815, há 200 anos, o naturalista alemão Maximiliano de Wied, em sua viagem do Rio de Janeiro à Bahia, navegou pelo rio Doce, de sua foz, até a cidade de Linhares. Ficou maravilhado com a exuberância da floresta e a riqueza de sua flora e fauna. A pintura do naturalista representando sua canoa navegando no rio é uma das mais belas de toda a viagem.

A colonização europeia no Brasil se iniciou há mais de 500 anos, mas as matas da bacia do rio Doce permaneceram razoavelmente bem preservadas até o final do Século XIX. Em seu livro intitulado “O Desbravamento das Selvas do Rio Doce”, o engenheiro Ceciliano Abel de Almeida, primeiro reitor da Universidade do Espírito Santo, dá uma bela descrição da paisagem que avistou a bordo do barco a vapor, ao viajar da foz do rio, até Baixo Guandu, por volta de 1905. Dentre outras preciosidades, teve o prazer de apreciar um bando de ariranhas brincando na margem do rio. Tempos depois, ele relata um encontro de sua equipe com um grupo de índios botocudos, que os receberam a flechadas. Esse cenário, entretanto, não duraria muito.

Durante os primeiros dois terços do século XX o desmatamento da bacia do rio Doce foi brutal. Três dos principais fatores foram a cafeicultura, a pecuária bovina e a siderurgia. Esta última, pela demanda de carvão vegetal que devorou grande parte da zona da mata mineira. Hoje extensas áreas de pastagens estão erodidas e abandonadas e muitos cafezais estão decadentes. Os solos expostos pelo desmatamento são carreados em enxurrada para o leito do rio, onde parte dos sedimentos acarreta o assoreamento e parte é lançada no mar, poluindo o ambiente marinho. Soma-se a isso o esgoto doméstico e industrial não tratado, lixo e contaminação por agrotóxicos, que degradam dramaticamente a água do rio. 

Em meados do Século XX o naturalista capixaba Augusto Ruschi alertava para o risco de grandes desastres no rio Doce. Com o desmatamento e assoreamento o rio estaria vulnerável a grandes cheias na estação das águas e severas secas na estação de estiagem. Em janeiro e fevereiro de 1979 o céu desabou sobre bacia do rio Doce. Sem florestas para atenuar o impacto, as águas barrentas desceram em enxurrada provocando a maior cheia que se tem notícia. Outras cheias catastróficas voltaram a acontecer, a exemplo de janeiro de 1997 e janeiro de 2013. Este ano estamos testemunhando uma das maiores secas da história do rio, agravada por uma rigorosa estiagem.

Como se já não bastasse, fomos surpreendidos com o rompimento da lagoa de decantação de minério da SAMARCO, lançando, subitamente, num afluente do Doce, nada menos que 62 milhões de metros cúbicos de lama. A enxurrada ceifou vidas humanas, destruiu povoados, inutilizou áreas agrícolas e seguiu seu curso pelo rio Doce, já castigado pela seca prolongada. A ausência de um plano de comunicação pública confiável, a desinformação e a incapacidade da imprensa de cobrir a tragédia adequadamente, estimularam a onda de boatos sem embasamento técnico/científico, muitas vezes disseminando o pânico. Dentre estes ainda circulam boatos de que o rio será esterilizado, aniquilando-se todo o ser vivo que nele habita.

Não resta dúvida de que a vida ribeirinha está sendo duramente castigada com o desastre. Um incontável número de peixes, outros vertebrados e invertebrados estão perecendo, principalmente, por asfixia. Além de dispor de pouco oxigênio dissolvido, a água lamacenta obstrui as brânquias dos animais aquáticos, impedindo sua respiração. Não menos importante é o impacto sobre os vegetais e microrganismos, muitos deles essenciais para o sistema ecológico do rio, mas que não chamam tanto a atenção como os peixes mortos na superfície. Alguns impactos certamente durarão anos e outros serão irreversíveis.

Diante da urgência e desespero surgiram dezenas de inciativas visando atenuar os impactos sobre a vida humana e a biodiversidade, algumas de eficácia questionável. Por exemplo, a iniciativa de capturar peixes, para reintroduzi-los após o desastre, sensibiliza a opinião pública, mas não produz os resultados esperados. O manejo conservacionista de fauna é algo complexo e, salvo situações muito específicas, não se pode fazer da noite para o dia. Na pressa são “resgatados”, principalmente, exemplares das espécies mais comuns, incluindo espécies exóticas e invasoras, como o bagre africano, que não necessitam de ajuda. Além disso, o número total de exemplares capturados certamente é insignificante em relação às populações de peixes que habitam o rio. Se o desastre exterminasse as populações naturais, esses peixes “resgatados” dificilmente repovoariam o rio. 

É possível que algumas espécies da flora, fauna ou microrganismos sejam extintas com a tragédia, mas isto será difícil de comprovar, dado o nosso conhecimento fragmentado da biota do rio. Entretanto, dizer que o rio Doce, como um todo, está morto não tem sustentação científica, nem serve ao objetivo maior, que é buscar a sua recuperação ecológica. Obviamente o nível de impacto foi mudando com o distanciamento da fonte do desastre. No primeiro terço do percurso, a lama realmente foi devastadora. É desse trecho que provem, por exemplo, a maioria das imagens de peixes mortos. No terço médio o impacto também foi brutal, mas a lama já foi sedimentando e se diluindo com a água do rio, reduzindo sua letalidade. No baixo rio Doce, no Espírito Santo, a água ficou extremamente barrenta, porém não é mais um rio de lama como no início. 

Convém lembrar que a biodiversidade do rio Doce já apresenta uma grande resiliência, ou seja, tolerância a alterações ambientais. Certamente as espécies ecologicamente mais exigentes e sensíveis à perturbação ambiental já desapareceram do rio. Por exemplo, as emblemáticas ariranhas apreciadas por Ceciliano Abel de Almeida, já se extinguiram há décadas, bem como um grande número de outras espécies de vertebrados e invertebrados menos conspícuas. Quem conhece o rio Doce sabe que, todos anos, logo após as primeiras grandes chuvas, o rio adquire a típica coloração barrenta. A biota que lá permanece já é parcialmente adaptada a essa condição ecológica.

Podemos dizer que o Doce é um paciente crônico, que foi acometido por uma infecção aguda, que o colocou na UTI, mas não o matou. Considerando que é na crise que surgem as oportunidades, temos que aproveitar este momento de comoção para nos mobilizarmos em torno de um grande projeto de recuperação da bacia do rio Doce. Não se trata, apenas, de recuperar o rio do desastre provocado pela SAMARCO.

Obviamente não podemos abrir mão da responsabilização criminal das empresas envolvidas, mas para recuperar o rio temos que assumir que a responsabilidade ambiental é de toda sociedade. O “paciente” está morrendo por causa do modelo de crescimento econômico imediatista e inconsequente que caracteriza a nossa sociedade e tem sido estimulado por nossos governantes. Por exemplo, o que faziam os prefeitos, que agora esperneiam contra a SAMARCO, para melhorar o rio Doce? E os planos para recuperação da bacia, quem estava levando a sério? E o viciado sistema de licenciamento ambiental, com relatórios de impacto redigidos conforme interesse das empresas impactantes? Quem está se empenhando em mudar esse sistema?

Temos que recuperar mais de 100 anos de destruição e descaso. Não é tarefa fácil, de curto prazo nem barata. Mas é uma grande oportunidade de investimento, tanto sob o ponto de vista ecológico, quanto social e econômico. Grande parte da bacia do rio Doce é hoje constituída por terras degradadas e improdutivas, com fazendas decadentes, vilarejos empobrecidos e biodiversidade erodida. O modelo econômico do Século XX, imediatista e predatório, fracassou. 

Evidentemente precisaremos recuperar grandes extensões de Mata Atlântica, começando pela restauração das áreas de preservação permanentes e efetivação das reservas legais. A retirada de efluentes tóxicos e esgotos in natura do Doce e seus tributários é uma meta ambiciosa, mas essencial para a saúde do rio. Entretanto, essas intervenções devem ser acompanhadas de um plano de desenvolvimento socioeconômico, ecologicamente orientado. 

Há cerca de 50 anos os ingleses começaram a recuperação do rio Tâmisa, que se encontrava quase morto, em situação pior que o Doce. Hoje o rio está povoado de peixes e nele podem ser avistadas focas, golfinhos e até pequenas baleias. Certamente o rio Doce jamais voltará a ser como aquele que impressionou o naturalista Maximiliano de Wied. Mas se começarmos a trabalhar de forma séria, colaborativa e coordenada, em algumas décadas poderemos ter um rio melhor do que é hoje e, até o final deste século, um rio que possa orgulhar as gerações futuras.

*Sérgio Lucena Mendes é ecólogo, professor de zoologia da UFES e especializado em conservação e manejo de fauna.


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